top of page

“Deveríamos lembrar do sangue, mas preferimos o chocolate”

  • Foto do escritor: Mário Alves.'.
    Mário Alves.'.
  • 16 de abr.
  • 3 min de leitura


A Páscoa nasceu antes de Cristo. Foi com os hebreus, ainda no cativeiro do Egito. Pessach, eles chamavam: a passagem. A tradição fala da travessia do anjo da morte, que pulava as portas marcadas com sangue de cordeiro, livrando os filhos primogênitos da sentença final. Era o anúncio de uma liberdade. Um povo inteiro marchando para fora da opressão, atravessando o deserto em direção a alguma promessa.


Séculos depois, outro sangue foi derramado, agora numa CRUZ. O cristianismo apropriou-se do símbolo e deu-lhe um novo nome: “ressurreição”. A morte como ponte para a vida. A liturgia se refez: pão e vinho, carne e espírito, sofrimento e glória. Era a repetição ritual da salvação. E na Semana Santa, revivia-se esse percurso principalmente - da Quarta-Feira a Sexta-Feira Santa - com uma solenidade de penitência, porém de muita união e alegria. O catolicismo fez o caminho da Europa para o Brasil com espada numa mão e cruz na outra. No sertão nordestino, impôs uma fé, que como em uma plantação em um terreno fértil cresceu e deu frutos. E foi assim que o calendário litúrgico passou a reger não só a alma, mas a mesa e os costumes do povo. A Semana Santa virou uma estação própria (tempo de jejum), de vinho suave, de peixe seco (quase sempre bacalhau) cuidadosamente separado para janta e para ceia (que era sempre farta).


Apesar disto, havia um peso no ar. Não se trabalhava na roça, nem colocava o gado no curral. Em muitas casas, a televisão era desligada. As crianças eram ensinadas a não brincar de correr. E havia uma verdade simples, cravada nos ossos: ali se lembrava da dor de alguém que morreu por todos, inclusive por quem não sabia. Mas o tempo passou. A celebração do sangue foi substituída por chocolate. E a cruz, antes instrumento de morte, virou enfeite de pescoço, alheia ao peso que um dia carregou. O povo continua a comprar peixe na Semana Santa, é verdade. Mas, às vezes, nem sabe mais o porquê. O vinho virou pretexto (e não nego eu gosto), o jejum uma superstição e o feriado que passou apenas para sexta, um descanso sem sentido.


A tradição virou vitrine. Hoje, a cruz nem divide espaço com prateleiras de ovos coloridos, feitos por marcas que se dizem “inovadoras”, mas que só reinventam o vazio. O símbolo do sangue do cordeiro virou de ovos de "coelho". A salvação nem é mais almejada. A fé se terceirizou: está nos aplicativos de oração, nos vídeos com filtro e nas frases de impacto, que confortam, mas não transformam. No sertão, ainda há quem mantenha o silêncio da Sexta-feira. Mas agora precisa competir com o barulho do carro de som, não apenas de músicas mais anunciando promoção de chocolate em dez vezes sem juros. Ainda há quem jejue, é verdade, porém no século XXI, é difícil viver sabendo que o jejum de muitas pessoas é a própria fome.


E a liberdade que a Páscoa prometia? Essa ainda não chegou para todos. É curioso como uma celebração nascida da libertação pode, com o tempo, virar apenas mais uma forma de prisão. Prisão do consumo, da aparência, da repetição sem sentido. A cruz continua erguida, mas às vezes parece que a multidão prefere a ignorância em fez da sabedoria, e se deixa ser enganado por discursos sem propósitos em palestras motivacionais (a nova moda).

Cristo ressuscita, ano após ano. Mas será que a gente percebe? Ou já substituímos o túmulo vazio por um carrinho cheio? No fim das contas, talvez o milagre da Páscoa não seja a ressurreição. Talvez seja o fato de que, mesmo esquecida, ela insiste em voltar. A cada ano, ela reaparece, entre um ovo e outro, perguntando baixinho se a gente ainda lembra o que significa passar da morte para a vida.

 

Uma boa Semana Santa, cheia de reflexão e penitência. E uma feliz pascoa, com amor e bondade!

Kommentare


Banco Sólido.jpg
Imagem do WhatsApp de 2024-01-31 à(s) 23.20.53_a3e69266.jpg
Imagem do WhatsApp de 2024-01-31 à(s) 23.21.56_8948460b.jpg
Netsat.png
001001_edited.png
Imagem do WhatsApp de 2022-12-22 à(s) 22.24_edited.png

NOTAS:

Divulgue aqui a sua marca!

bottom of page